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Califórnia de Bruma, Corvo, uma Terra de ambiguidades

 

Chegar ao Corvo e sentir que aqui se vive como no resto do país e do mundo, talvez seja surpreendente para quem, ousadamente, possa ter pensado que, num espaço de terra tão curto, não se pudesse encontrar lugar disponível para o sonho ou para a loucura saudável. Não podia haver erro maior.
Só que vir ao Corvo de Verão na lancha da família Augusto, calcorrear a pé as ruas da pequena vila, visitar o Caldeirão e almoçar num restaurante que nos oferece Vivaldi à entrada e “pudim de pêssego e gelatina” à saída, não chega para compreender como é que menos de quatrocentas pessoas são aqui felizes à sua maneira, sem depressões exageradas, porque o corvino não é servil nem excessivamente solícito e isso fá-lo sobreviver emocionalmente de forma muito saudável.

Não faz da extroversão a sua marca fundamental de personalidade, pelo contrário. Os corvinos são reservados, desconfiados, infiéis ao melhor amigo especialmente por razões políticas se isso se revelar necessário porque os corvinos são muito sensíveis a tudo o que mexa directamente com as suas vidas, o que faz com que a política ocupe lugar de grande destaque na vivência de um povo que não suporta a petulância de quem não seja corvino dos pés à cabeça sentindo os problemas da ilha como seus. Ai de quem for “mal amado” nesta pequena terra porque fica confinado a um curtíssimo espaço para se movimentar em liberdade interior condicional. Mas apesar de tudo, mesmo os mal- amados sobrevivem sem medo, neste bocado de ilha batido de mar onde tudo parece um estranho equívoco.
Nunca se percebe se a simpatia é um acto de gratuidade e ternura para connosco ou uma forma de esconder o que se quer e se sente.
Essencialmente, o corvino é uma entidade igual a si mesma e os primeiros contactos com eles não são fáceis. Mais tarde, depois de saber com quem lida, o corvino vai abrindo lentamente as portas duma relação cheia de segredos. Não é fácil conquistar o coração desta gente que não tem nada de humilde. Mesmo os homens mais velhos têm um ar imponente, sem ser arrogante, mas é como se o mundo começasse e acabasse aqui. Os jovens são bonitos, sobretudo os homens de meia-idade, detentores de um charme arrogante mas viril. As adolescentes são bonitas mas ostentam um sorriso enigmático e particular. Não são de relacionamento fácil com os estranhos mas são inteligentes e críticas sem serem mesquinhas ou pobres de espírito. Quando se fala de política, caem na mesa, consoante o interlocutor, mil razões para justificar as vitórias de uns e as derrotas de outros. Há quem fale em corrupção e suborno num tom que soa a ingenuidade e pureza como só podia ser numa terra deste tamanho onde os votos podem ser comprados em interessantes negócios à porta fechada porque é fácil, para o negociante saber se foi ou não, enganado. Parece tão estranho que essas coisas possam existir nesta dimensão, aparentemente tão curta mas simultaneamente tão complexa. Fica-se com a estranha sensação de estarmos sempre errados ou então de nos estarem a confundir de forma propositada para não os entendermos.

Na farmácia de um Posto de Saúde equipado com “quase” tudo o que pode ser necessário para fazer face às queixas de pouca gente, também se vendem ansiolíticos e antidepressivos em quantidades razoáveis mas não se percebe se o que se pretende com isso é acalmar a ira, suportar a dor ou, pura e simplesmente, resistir. Também se bebe café puro em quantidades industriais, o que faz com que, florentinos e corvinos tenham fama de doidos por esse pequeno excesso que, em ambas as ilhas se comete, sem se perceber e valorizar que, verdadeiramente aquilo que nos “enlouquece” será a insularidade e um clima húmido, logo, deprimente.
O visitante que pára para ver, conversar e estar com as pessoas, sai daqui sem nenhuma certeza e um mundo de dúvidas. O que é verdade ou mentira no Corvo é uma questão para reaprender muito mais tarde, nem sei bem quando, mas não é coisa que se possa fazer em meia dúzia de dias de convívio com os corvinos.
Os corvinos são inteligentes e argutos, interessados por saberem sempre mais, criteriosos nas suas escolhas e permeáveis à novidade e à evolução. Desta terra saíram verdadeiros cérebros que fazem inveja às ilhas grandes.
A ilha paga os seus luxos ao mais alto preço mas não prescinde deles.
Odeia a dependência da ilha vizinha que, não raras vezes, os decepciona não enviando atempadamente, e em quantidade, aquilo que no Corvo é fundamental para sobreviver.

A população do Corvo é jovem e sente-se bem onde está. Enquanto, das Flores, partir é um alívio, do Corvo sai-se mais por necessidade. Os corvinos gostam da sua ilha e vivem a sua vida interior com uma intensidade muito própria e muito particular. As noites não são monótonas, sobretudo se forem passadas num pub onde o requinte e o bom gosto disseram “presente”. O Zé, funcionário da SATA, com mais dois sócios e amigos, não precisam publicitar um espaço correcto, do ponto de vista da arquitectura local para as funções que desempenha, com uma decoração singular, regional mas requintada e com um serviço de bar igual ao de outros tantos bares de todo o lado por onde temos passado. Nos Bombeiros, uma sala espaçosa e com luzes com efeitos especiais faz a discoteca bem animada no fim-de-semana e serve café ao longo dos outros dias. O restaurante tem a qualidade de qualquer outro do mesmo tipo e serve com a simpatia da Teresa e da Fátima uma cozinha ao estilo corvino, ou seja, com requinte especial a que não faltam “fondue “ ou “bife na pedra”. Às vezes, géneros mais frescos podem estar dependentes de fornecimentos das Flores, trazidos na lancha da família Augusto que nem todos os dias cumpre como seria desejável. Mas a imaginação aí entra a matar e não se passa fome, nem de comida nem de requinte, por conta do facto.

O Drº João Cardigos e a enfermeira Goretti, sua esposa, constituem o corpo clínico do Posto de Saúde. Competentes e eficazes, resolvem o qupodem e remetem para as Flores, ou por evacuação para outra ilha, os doentes que não encontram soluções em nenhuma delas. O Drº João Cardigos tem uma encantadora filha, a Beatriz, que é corvina e linda. A sua casa é uma discoteca em grande, com centenas e centenas de CD”s, muitas revistas nacionais e estrangeiras, literatura médica e muita outra. Um homem informado e feliz que já se sentou na cadeira da Presidência da Câmara do Corvo tendo realizado aí um excelente trabalho que os corvinos, provavelmente, não souberam ou não quiseram aproveitar completamente. Não se percebe se João Cardigos, que ofereceu já treze anos da sua vida ao Corvo, é muito ou pouco amado. Os corvinos não mostram o que sentem face a este homem um pouco controverso que é o habitante mais ilustre do Corvo mas com um problema grave: não nasceu ali e deu nitidamente uma volta ao “way of life” dos corvinos que não gostam muito que lhes mexam com os hábitos. Depois de falar de João Cardigos é quase inevitável que se fale de Manuel Rita o homem que lhe roubou a cadeira da Presidência da Câmara da ilha. Manuel é um emigrante que regressou trazendo o conforto que tinha na América para uma sólida casa construída ao seu gosto, onde se sente feliz na companhia da esposa e filhas, meninas nascidas nos Estados Unidos e perfeitamente adaptadas e felizes no Corvo.

O poder, na ilha, está, pois, nas mãos de Manuel Rita, um homem simples, simpático, sorridente, directo e frontal, corvino dos pés à cabeça. Eleito pelo PSD tem boas relações com toda a gente e é ouvido com atenção em todos os auditórios não fosse ele o representante da população dos Açores com maior rendimento per capita. Dois deputados, o Zé Manel pelo PSD e o João Greves pelo CDS/PP completam o quadro de gente importante do Corvo desde Outubro último, altura em que o PS perde o seu candidato natural no Corvo: desde 1975 que o Corvo sempre elegeu candidato pelo PS. Mais: os últimos mandatos foram feitos por um corvino não residente no Corvo. Mas era corvino. Mas não terá sido isso que fez mudar tudo nesta terra tão estranha. O que deixou na Repartição de Finanças um rapaz inteligente e crítico para colocar na Assembleia Legislativa Regional o carteiro mais simpático dos Açores, foi provavelmente outra coisa que não pode ser explicada de forma aligeirada. O PP que nunca tinha tido no Corvo mais de meia dúzia de votos, “papa” agora o próprio PSD numa operação liderada por cabeças pensantes que se enganaram ligeiramente nas contas e poderiam ter mesmo arrumado o candidato do PSD. Isto não corresponde, como é óbvio, a nenhuma mudança ideológica uma terra que não se coloca a si própria questões de tal complexidade. Isto são, sim, histórias para contar, um qualquer outro dia, num livro que fale de gente que pensa, decide e actua, como e quando quer, sem medo de nada, nem tão pouco de ter apenas dois quilómetros e alguns metros de estrada para andar, numa ilha onde não faltam carros e veículos motorizados em quantidade que baste para se dar a volta ao Corvo dez vezes e ver sempre coisas diferentes. O segredo aqui, é cúmplice até à morte.

Numa pista curta, mas bem localizada, entra e sai o Dornier duas vezes por semana trazendo e levando gentes e notícias. Sou das que vai ao Corvo com regularidade. E gosto. Começo a ter amigos no Corvo.
Não se sente ali a sensação de isolamento que se sente, por exemplo nas Flores. Ou pelo menos a forma de estar isolado é totalmente diferente. Há menos estrada para andar, é certo, mas há a experiência fascinante de nos sentirmos a bordo de um transatlântico a navegar em águas, ora calmas ora agitadas, com uma equipa de bordo que, do comandante ao grumete, conhecem bem as funções que ocupam e sabem gerir com eficiência e destreza as funções que lhe são confiadas. Com as âncoras no fundo, o navio não se perde. O resto não é seguramente para turistas investigarem.

PS: Este texto foi escrito em Abril de 1997, na altura em que trabalhava na Revista Açorianissima. Tenho estado a rever esses textos que entretanto publiquei num livro a que chamei “Califórnias de Bruma”. Tem sido interessante rever o que então escrevi porque, com a dinâmica da vida regional, o espectro social está muito diferente e, muitas das coisas que, nessa altura, eram verdades incontornáveis, estão hoje completamente ultrapassadas. Mas há outras que mudaram. E muito.

Neste momento, as viagens para o Corvo já são realizadas em semi-rígidos muito seguros que são dominados ao detalhe pelos irmãos Mendes Toste, o Carlos e, mais recentemente, o Pedro. Com bom tempo, a viagem transforma-se num imenso prazer porque é rápida e permite uma incursão pelas grutas da periferia da ilha que são fabulosas. Também o Cristino Malheiros possui uma embarcação idêntica e também faz viagens turísticas entre as duas ilhas. O Mestre Augusto já faleceu e não deixou no mar senão o José Humberto, que faz os trabalhos de maior dimensão com os filhos, nomeadamente no que diz respeito aos abastecimentos ao Corvo a seguir à vinda dos barcos às Flores o que acontece agora de quinze em quinze dias, num cais acostável nas Lajes, sem as contingências do passado.
Na ilha do Corvo, Manuel Rita, continua a ser um dos homens mais poderosos, agora dono da residencial COMODORO com instalações excelentes para quem queira fazer do Corvo o seu local de férias. E não faltam razões para que este pode vir a ser um destino de grande interessa. O Corvo cresceu de forma significativamente e o passado é apenas uma recordação.

Um dos Deputados Regionais eleito pela ilha é do PPM e é continental. Tirou ao José Manuel da Sata a possibilidade de ser deputado mesmo sendo ele um “corvino de geme” a quem o Corvo muito deve. Mas isso só revela, uma vez mais, o carácter dos corvinos ou a argúcia de Paulo Estevão, o candidato vencedor pelo PPM que fez do Corvo a sua Pátria, segundo muitos, apenas para ser deputado. Seja como for, a verdade é que, aqui, as coisas são o que são e os votos são tão poucos que a sua manipulação se apresenta a um tempo muito difícil ou extremamente fácil.
Tem mais: Manuel Rita vai ser, nas próximas autárquicas a aposta ganha do Partido Socialista. Vai sentar-se, mais uma vez, na cadeira da Presidência, o corvino mais corvino de sempre, aquele que, tendo conhecido a vida num grande continente, optou por voltar e desenvolver a terra que o viu nascer e que cada vez se parece menos com o Corvo dos velhos tempos em que as distâncias eram vencidas com uma lentidão agonizante que dava medo.
Parece que se podia pedir o regresso de Vivaldi ao restaurante O Caldeirão, agora propriedade da família Castanheira e Soares porque meninas bonitas até tem e a receita du pudim de pêssego, posso dar de boa vontade.

 

 

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